"O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o
Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos
doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui
encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que
demorei a perceber quem era. Disse-me
- Abrace-me porque é o último abraço que me dá
durante o abraço
- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento
e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.
Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o
fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas
entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de
respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia
quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:
- Estou aqui para lutar
e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei
nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o
terror, a coragem e a esperança.
A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros,
comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da
morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim,
que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para
isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me,
fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento
desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido
- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento
porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque
não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço
da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio.
Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma
lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais
parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços
esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer
gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não
compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o
último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há
muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me
sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água
se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem
fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte
alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E
depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada
porque a fama é nada.
O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a
recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de
cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava
uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de
quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso:
o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam
mal:
- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.
Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele.
Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje,
senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital
de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em
gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.
Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a
estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói
algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu
Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a
todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia.
Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que
damos.
Brutal!
ResponderEliminarÉ mesmo... brutal. Um beijinho para ti.
Eliminara Silvina é daquelas pessoas que, quem a conheceu (mesmo que virtualmente, que foi o meu caso) nunca mais a esquecerá! trazemo-la na pele, como uma tatuagem... e acompanha-nos uma revolta, uma persistente revolta interior... contra essas doenças que são mais fortes que pessoas tão fortes como ela!
ResponderEliminarObrigado pelo artigo e pela homenagem... importas-te que partilhe no meu blog?
1 beijinho e bom ano 2014!
Olá Monóloga, compreendo-te bem e partilho do teu sentimento. Estás à vontade para partilhar o texto, com o cuidado de indicar que é do António Lobo Antunes, eu só o copiei, em homenagem à Silvina de quem me lembrei a cada linha. Um grande abraço
Eliminarfeito. obrigado. podes ir espreitar...
Eliminarhttp://monologando.blogs.sapo.pt/
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